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MINHAS CONVERSAS COM OS VIVOS

                              AOS VIVOS 
 

DEGRAU DO DIÁLOGO


Por aqui e por agora, publico cinco ‘diálogos’ que gostaria de ter tido com cinco colegas. Por isso, as minhas ‘Conversas com os vivos’ por Jorge Leal. Aproveito para esclarecer um episódio. 

Meu neto discorre sobre minha capacidade de tradução e declarou que “mais uma vez, deu prova, ao saudar de improviso, em francês, o escritor George Dumas, recebido no Salão Nobre da Faculdade de Direito, na sua visita a Bahia, em agosto de 1937”.

Dumas era uma personalidade internacional e, naquele ano, tinha recebido o título de Doutor Honoris Causa na Universidade de São Paulo. Nada mais natural que o recebesse, como diretor, na Faculdade de Direito da Bahia. Na verdade, era médico e psicólogo, com muitos livros publicados sobre suas especialidades – nada de ficção.  

Nunca deitei no divã do psicanalista. Mas pesquisei muito sobre a alma humana, inclusive para compreender como vencer as vicissitudes – e também olhar para os chamados ‘criminosos’, que meus opositores diziam ser uma característica de nascimento. 

O Dumas que visitou a Bahia não era o Alexandre, embora fosse um grande proseador.

As minhas conversas com os vivos são com alguns já também falecidos. Ou seja, de igual para igual. De falecido para falecido. De ido para ido. 

DEGRAU CONVERSA COM OS VIVOS - 1  


Com Jorge Bastos Leal, meu neto advogado. 

Jorge dispensa apresentação, advogado brilhante que foi. Durante um período, um área do Fórum que leva meu nome, em Feira – e que não conheci – era apelidada de ‘Ala Jorge Leal’.  

Cedo a palavra…


MEDALHA DE MÉRITO DES. FILINTO BASTOS
Discurso pronunciado na Câmara Municipal de Feira de Santana, na sessão solene de 11 de dezembro de 1989, pelo Bel. Jorge Bastos Leal.

Exmo. Sr. Presidente desta Câmara, Vereador Otaviano Ferreira Campos.
Exmo. Sr. Vice Prefeito deste Município, Prof. Luciano Ribeiro, também
representando o Exmo. Sr. Dr. Colbert Martins da Silva, digno Prefeito Municipal.
Ilmos. Srs. Vereadores.

Dignas Autoridades presentes e representadas. 
Senhoras e Senhores. 

“Não se disputam as honras nem se recusam; obedece-se à injunção, alheio ao ônus que delas decorre, com a serenidade estóica dos que se esforçam por cumprir o dever”. 
São palavras do insigne Professor Dr. João Américo Garcez Fróes, Catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Direito da Bahia, meu mestre, que repito neste momento solene em que me é conferida a Comenda Filinto Bastos.
A distinção honorífica, criada por lei desta Egrégia Câmara de Vereadores, quis perpetuar a memória de um feirense que soube engrandecer a terra natal e que a ela dedicou incomensurável amor. 
Aqui nascido, a 11 de dezembro de 1856, Filinto Bastos fez os primeiros estudos com o Prof. Lupério Leobino Vitório e com o Padre Ovídio Alves de São Boaventura. Em Salvador, cursou o Seminário de Santa Tereza, optando depois ingressar na Faculdade de Direito de São Paulo e obtendo o bacharelato em Recife, no ano de 1882.
Voltando a Bahia, foi Promotor Público em Camisão, hoje Ipirá. A magistratura, porém, o seduziu e veio a exercê-la como Juiz Municipal e de Órfãos de Tapera, atual Santa Terezinha, e depois como Juiz de Direito, sucessivamente em Caetité, Caravelas e Amargosa. 
Por concurso, em 1897, já então Juiz de Direito na Capital do Estado, ingressou no Tribunal de Apelação e Revista, que o atual Tribunal de Justiça, vindo a aposentar-se em 1934.
Foi Professor da Faculdade de Direito da Bahia, desde 1897; no exercício da cátedra e como seu Diretor, faleceu em fevereiro de 1939. Ensinou Direito Civil, Direito Romano e substituía qualquer professor das demais cadeiras de direito.
Em breve relato acima estão alguns dados da vida de Filinto Bastos que, como magistrado e professor, mereceu de seus contemporâneos elogiosos pronunciamentos. 
Assim depôs o Prof. Ponciano Ferreira de Oliveira, Catedrático de Direito Comercial, também, por anos, colega de magistratura:
“Tive a honra e a ventura de ser companheiro de Filinto Bastos no Superior Tribunal de Justiça do Estado, quando se consolidou minha grande admiração pelo mesmo. Lembro-me bem que não raras vezes o Tribunal teve de pronunciar-se sobre assuntos de magna importância. Cada qual de nós manifestava o seu voto, na medida de suas forças. Filinto Bastos era o último a falar, e quando acabava de emitir o seu voto, o Tribunal inteiro o acompanhava, sagrando-o primus inter pares”.
Orlando Gomes, Catedrático de Direito Civil, cuja recente perda a Bahia e o Brasil ainda lamentam, apreciando a atuação do magistrado, observou:
“A sua carreira de magistrado, do promotor ao desembargador, é uma pagina escrita no estilo brônzeo que só a cultura aliada à honestidade sabe traçar para a admiração reverente dos que podem lê-la com olhos de aprender”.
“A sua atuação como juiz, inteligente, culto e probo, repercutindo imediata e generalizadamente na sociedade em que viveu, já foi múltiplas vezes apreciada e louvada. A própria corporação dos advogados já a julgou, em definitivo, com melhor conhecimento de causa, dizendo que era dos magistrados que poderiam mostrar a toga, com orgulho. Não é outro o julgamento de quantos tiveram oportunidade de mirar a trajetória de luz, que se inicia, em 1883, na Comarca de Camisão, e se finda numa aposentadoria gloriosa no mais alto tribunal deste Estado”.
E sobre o mestre, Orlando Gomes, que foi seu dileto aluno, deu o depoimento:
“Mestre foi, em todo o sentido. Neste mister difícil alteou-se a cimos de onde visto uma vez não é mais esquecido”.
“Fez-se uma organização completa de professor porque sabia ensinar. Este o seu grande mérito. O que impressionava a seus discípulos, quando modestamente assumia à cátedra, não era pelo brilho fugaz de preleção, mas, a capacidade de lecionar, o segredo de se fazer entendido por todas as inteligências, sem afetação, sem artifícios, sem superficialidade”. 
“Eloquente, dessa eloquência que se não alimenta do jogo sonoro de palavras e se não extras da musicalidade da voz, jamais transformou a tribuna de professor em instrumento de oratória vazia, com que o verbalismo estéril costume suprir a falta de ciência”.
“Sabia que ensinar é transmitir conhecimentos e que não se transmitem conhecimentos no tom enfático das arangas populares. Sabia que o professor deve falar à inteligência, não ao sentimento. Sóbrio de palavras, sóbrio de gestos, nem por isso se converteu em campeão de insipidez catedrática, porque possuía a verdadeira eloquência do mestre, aquele que se mede pela elevação de conceitos expressos em linguagem simples, acessível ao entendimento de todos”.
De perfeito conhecimento das ciências jurídicas, o Prof. Demétrio Tourinho, Catedrático de Direito Judiciário Penal, assim se expressou:
“Conhecia os segredos da eloquência judiciária como ninguém do que sobejas provas deu nas discussões travadas no Tribunal de Apelação do Estado, do qual foi uma das figuras mais eminentes”.
“Todas as ciências jurídicas eram de seu trato diário e, por isso, sabia profundamente Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Judiciário, Direito Internacional, Direito Civil e Direito Romano”.
A 11 de dezembro de 1985, neste recinto da Câmara de Vereadores, o conceituado advogado Dr. Fernando Pinto de Queiroz, o primeiro a receber a Comenda Filinto Bastos, honraria que faz justiça ao competente profissional e íntegro varão, recordou aspectos da atividade literária de Filinto Bastos, tanto versejando como traduzindo da língua inglesa, poema de Lord Byron, o Giaour, da língua francesa, versos de Paul Bourget, e do latim, epístola do Papa Leão XIII, dessa forma demonstrando o seu perfeito domínio de línguas vivas e mortas. E disso, mais uma vez, deu prova, ao saudar de improviso, em francês, o escritor George Dumas, recebido no Salão Nobre da Faculdade de Direito, na sua visita a Bahia, em agosto de 1937.
Fernando Alves Dias, por muitos anos Promotor Público nesta comarca, na sua obra ‘A Justiça através de um Juiz’, fez um relato da vida de Filinto Bastos, pondo em relevo a pessoa do mestre e do magistrado, além de aspectos da sua produção literária, com destaque para a dedicada ao direito.
Filinto Bastos foi membro da Academia de Letras da Bahia e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Incentivou a Obra das Vocações Sacerdotais e a Conferência de São Vicente de Paula.
Ao homem apontado como juiz integro e culto, como professor de reconhecida competência, desde jovem um rematado humanista, não poderiam faltar, na sua vida particular, qualidades de inteireza moral. 
Cabe a mim, nesta oportunidade, dar o testemunho do modo de viver do avô, porque neto de Filinto Bastos eu sou, e que, por inescrutáveis desígnios, por ele fui criado e educado desde a tenra idade, juntamente com minhas irmãs Heloisa e Cora. Fomos netos, e continuação dos filhos, e no mister de criar e educar contou Filinto Bastos com o imensurável amor de Carolina , a avó, de fato mãe de todos nós, de inesquecível memória.
Naturalmente educado, polido, incapaz de um gesto desabrido, de uma palavra áspera, sabia Filinto Bastos educar com bondade, mas sem dispensar o rigor das normas então vigentes.
Atencioso para todos que o procuravam, ora à busca de uma orientação, ora para uma consulta de mais profundidade, jamais negou o conselho, jamais deixou sem resposta a indagação sobre a matéria exposta.
Conhecida era a sua especial atenção pelos feirenses. A visita de um conterrâneo o alegrava.
Em casa, dedicava quase todas as horas ao estudo dos processos que devia relatar no Tribunal, ou ao preparo das aulas na Faculdade.
Imbuído de profundo espírito religioso, diariamente frequentava o ofício da missa, e com o seu exemplo de viva demonstração de fé exercia sensível influência da sua religiosidade, sem contudo a impor.
Nas férias, trazia a família para o interior, e me recordo das estadas em Itaparica, em Conceição da Feira, em São Gonçalo dos Campos, em Tanquinho e nesta cidade, na Chácara do Valado.
Dos anos de infância e de juventude, guardo a lembrança de um lar tranquilo, mantido o espírito de união, de compreensão, preservado o sentimento religioso, obediente a normas rígidas de educação, e no qual o incentivo ao estudo era permanente. 
Tendo completado, no dia 8 último, cinquenta anos de formado em Direito e há cerca de quarenta e sete anos exercendo, aqui em Feira de Santana, a nobre arte da advocacia, não me desligo do passado e mantenho sempre viva a recordação do ambiente familiar e das qualidades morais e intelectuais de Filinto Bastos, exemplar em todos os aspectos de sua vida.
Não pedi a honraria, que foi ato de bondade desta ilustre Câmara de Vereadores, e não a posso recusar, pelas circunstâncias que motivaram a sua concessão. 
Agradeço ao digno Vereador Dival Figueiredo Machado a indicação do meu nome para a distinção que ora me é conferida, a Comenda Filinto Bastos, como grato estou a todos os Srs. Vereadores que a aprovaram.
Por fim, o agradecimento a todos os que, com as suas presenças, contribuíram para o maior brilho desta solenidade.

Obrigado, Jorge. Sem palavras. 

Só gostaria de saber como sobrevive Itaparica? Conceição da Feira? São Gonçalo dos Campos? Tanquinho? E minha querida Chácara do Valado, em Feira? 
Por favor, me conte…


DEGRAU CONVERSA COM OS VIVOS - 2  

Com Fernando Pinto de Queiroz. Advogado.
Meu ‘colegamigo’, neologisticamente falando. 


FPQ foi dos poucos e bons da Academia de Letras da Bahia. Dele recebi algumas belas palavras, abaixo transcritas. Fernando foi sócio por 40 anos de meu neto Jorge Bastos Leal, em um escritório de advocacia em Feira. Por curiosidade, tornou-se estudioso da minha vida – o que agradeço. Chegou, inclusive, a ser o primeiro a receber a Medalha que leva meu nome, entregue pela Câmera dos Vereadores de Feira. 

O pronunciamento foi na comemoração do meu sesquicentenário. 

Ser imortal é complicado. Cá estou...

Ah, para lhe devolver as loas, ressalto que Fernando ocupou a cadeira 10 da nossa confraria de intelectuais, escritores e pensadores (alguns nem tanto). Na OAB, a tal Ordem dos Advogados do Brasil, fundada em 1930, foi membro da seção de Feira de Santana. 

Pois em 12 de dezembro de 2002 proferiu um discurso a pedido de uma ‘suspeita’ Associação Filinto Bastos, fundada em 1º de maio de 1947 para agregar ex-alunos dos Seminários Católicos de Salvador. 

Aqui me entreguei: o discurso aconteceu anos depois de minha partida. 
Como sigo vivo, acompanho de perto. 

A celebração pelos meus 150 anos aconteceu em uma Assembleia Geral na Igreja de Santa Tereza, dentro do Seminário onde estudei. 

Agora, para quem me lê, transformou-se no Museu de Arte Sacra. 

Vontade de visitar. Será que vão me cobrar ingresso?    

Melhor do que discurso, as palavras de Fernando parecem-me uma carta que ora recebo, recheado de LETRAS MAIÚSCULAS, as Caixas Altas das tipografias. Por que os metais ficavam nas caixas do alto. 

– Da figura invulgar de FILINTO JUSTINIANO FERREIRA BASTOS, uma das facetas menos lembrada, pouco estudada e conhecida, e, por isso mesmo, reconhecida, é a do poeta, que ele sempre foi, em verso e prosa. 

Segue seu proseado.

– Não se trata, no seu caso, de episódica exteriorização dos inspirados e sublimes sonhos e anseios da adolescência ou da mocidade, que a tantos conduziu ao reino encantado da poesia, nos impulsos incontidos da idade; muito menos representa um mero exercício para medida da inteligência e disciplina da linguagem, pelo enriquecimento do vocabulário – exigência da rima – ou o domínio do ritmo – consequência da métrica –, atributos dos grandes tribunos e dos melhores educadores 

Se são loas, só podem ser boas.

– A magnitude do desempenho do jurista – advogado, membro do Ministério Público, magistrado, professor e tratadista – ofuscou as muitas virtudes outras, diversificadas por suas características e pelos setores em que se manifestaram, de que foi portador, num conjunto às vezes até aparentemente contraditório por seus elementos constitutivos, mas, em verdade, de rara e bela harmonia, não fora ele dotado daquela “superior capacidade de compreender e aceitar os contrastes da inteligência”, a que se reportou JOSAPHAT MARINHO em palestra pronunciada no FÓRUM INTERNACIONAL DE DIREITO PENAL COMPARADO. 

Coloca-me em boa vizinhança.

– Como somente os autênticos grandes homens soem ser, FILINTO BASTOS afirmou-se pelo recato, a humildade, a modéstia, a compreensão, a tolerância, sem prejuízo de altivez, da coragem, da coerência, do saber profundo e atualizado, qualidades tantas que levaram ao julgamento definitivo por VIRGILIO DE LEMOS proferido, em 1916. 

Sábio é exagero. 
Sempre achei. 

– “É UM SÁBIO EMBUTIDO NUM JUSTO”, a que ORLANDO GOMES, em discurso de 15 de abril de 1939, quando de mais uma homenagem prestada ao que ele denominou de “MESTRE DOS MESTRES”, falecido aqui em Salvador, em 8 de fevereiro daquele ano, aduziu: “SÁBIO E JUSTO, CULTO E VIRTUOSO, A UM TEMPO, O TALENTO E A CULTURA NÁO LHE SOMBREARAM O CAMPO MORAL DA AÇÃO, MAS O ILUMINARAM COM FULGORES DE ALVORADA”; contudo, ocupante aureolado das cumiadas, pela dignidade e pelo saber, viveu “COMO SE PEDISSE DESCULPA POR SEU RELEVO”, como acentuou JOSAPHAT MARINHO.

Ah, Josaphat. De jurista virastes político. Foi o que me disseram por aqui.   

– Tinha FILINTO aprendido a se bastar com o ser, não se abastardando com o parecer. Teria que ter sido como foi: não um fruto aleatório do destino, mas um predestinado, como pressentiram seus pais ao lhe conferirem, na pia batismal da Matriz de Santana, em cerimônia presidida , em 10 de dezembro de 1857, pelo Vigário JOSÉ TAVARES DA SILVA, conferiram, repito, cujos valores se agregaram ou se revelaram no processo de formação de sua personalidade.

Valores batismais é a primeira vez que ouço.  

– Com o FILINTO (não esqueçamos de FILINTO ELYSIO) e o JUSTINIANO (o grande jurista) do prenome, que também lhe pertencia, o pai lhe transmitira o ex-libris dos BASTOS, em que, afirmativa e profeticamente, se lia: “NÃO SE RENDE”, mensagem por ele honrada em todo o curso de sua invejável existência.(...) 


MINHA CONVERSA COM OS VIVOS – 3 
Com Fernando Alves. Promotor e meu primeiro biógrafo.  
Outro Fernando, o que gastou seu tempo para escrever ‘A Justiça através de um Juiz’(S.A. Artes Gráficas, 1956, Bahia), asseverou:


– Dentro de seu peito ardia uma alma de poeta, um coração revoltado contra as injustiças e um espírito pronto a receber todas as manifestações para o bem.

Juro que não foi por privilégio meu nem dos poetas que escreveram com alma e coração. Melhor: com os olhos e ouvidos. Porque víamos e ouvíamos as crueldades dos garrotes, das algemas, das chibatas. 

Eles sim são heróis porque resistiram e lutaram. A escravidão foi mundial. Dezenas de milhares de navios negreiros sujaram de sangue os oceanos. Com pior resultado para os africanos que se espalharam pelo mundo – mas deixaram muito mais do que sofrimento. 

A herança também veio em conhecimento e cultura. 


É o que via ao caminhar por Feira, Camisão, Amargosa e Salvador, quando conversava com negros – e também indígenas, no caso paulista, diga-se – e aprendia seus linguajares, seus hábitos, seus alimentos, seus trajes. 
Et coetera.       
Voltarei ao tema.
Retorno para as letras.

Disseram-me que Fernando Alves também datilografou – e foi lido pelos meus descendentes: 

– Não sei, e até hoje ainda não me foi dado investigar, o motivo porque Filinto Justiniano Ferreira Bastos, tendo-se revelado como poeta, cultivado a poesia, amado e endeusado certos poetas como Virgílio, Shakespeare, Castro Alves, Junqueira, sido amigo e companheiro de Raimundo Correia, Augusto de Lima e Sales Barbosa e de outros aedos, haja abdicado dessa tão nobre arte glorificadora de tantos brasileiros românticos e parnasianos.

E completa, o meu dedicado biógrafo: 

– Modéstia? Conhecimento de pouca valia dos versos e aquele senso admirável que sempre o acompanhou pela vida, o motivo de afastar-se da luminosa estrada palmilhada pelos Vicentes de Carvalhos e Raimundos Correias? Seria o fato de viverem, naquele tempo, os maiores poetas do Brasil, e o ilustre feirense, sendo príncipe nas demais manifestações do pensamento, preferia desaparecer para não ocupar lugar subalterno?
Antes de finalizar esse degrau/capítulo, apoio o leitor com uma ‘tradução’ do termo ‘aedo’. Na Grécia Antiga, era um rapsodo que, ao ouvir o toque da lira, recitava suas composições. Parece -me que Homero foi o mais famoso. Ah, rapsodo designa o escritor de poesias, o poeta, também pelo grego antigo. Ou seja, um recitador profissional de poesias épicas. 

Esclarecido isso, me coloco distante de Homeros e Virgílios... 
Quem sou eu? De Virgílio, já me basta o de Lemos, que escrevinhou o prefácio de um livro meu. Por ele fui chamado de “sábio embutido num justo”. 


MINHA CONVERSA COM OS VIVOS - 4  

Com Virgílio de Lemos. Jurista e professor.

 

Tenho duas armas: a jurídica e a religiosa. Uma verbal, outra silenciosa. 

Na ocasião do lançamento do meu livro Estudos Jurídicos, de 1916, ganhei algumas palavras exageradas, mas belas, de Virgílio de Lemos. Tomo a liberdade de transcrevê-las. Virou prefácio da publicação, com o título O professor dezembargador Filinto Bastos. Só após minha morte que o honorífico trocou o Z pelo S. 

Às palavras: 

– Além do alto valor scientifico e literário, que lhe comunicam as excelentes monografias de sua composição, tem este livro um outro que sobressai àquele em nobreza – o de sua origem e fins. 
           É uma obra de justiça e de amor; porque é a sagração de um nome que se ilustrou e se fez querido e respeitado na prática das mais preciosas virtudes cívicas, o do exm. Snr. professor dezembargador Filinto Bastos, honra da magistratura e glória do magistério. Compôl-o um punhado de colegas, discípulos e admiradores seus, para lh’o ofertarem no dia em que completa sessenta anos de existencia, de uma existencia verdadeiramente feliz, porque laboriosa, fecunda e digna.
           Pouco terei que dizer de referência ao magistrado insigne e eminente, que ele o é. Esta feição de sua nobre individualidade, pela própria natureza das funções a que corresponde, tem a mais ampla notoriedade na consciência dos seus concidadãos. Todos como tal o aclamam e reverenciam. Tentar aqui uma justificação raciocinada desse pregão, seria descer inoportunamente, ainda que fora trabalho para desprezar noutra ordem de estudos, à análise minudente de um sem número de actos e decisões, muitas das quais importantíssimas, onde se  estereotipa o carácter do juiz exemplar, a um só tempo severo e prudente, profundo e claro, modesto e sábio, penetrante e conciso, belo tipo de julgador modêlo, em quem se desdobram, de par e em esplêndida  harmonia, a mais pujante e avigorada capacidade técnica e a mais límpida probidade funcional, oriunda aquela do trato assíduo e jamais olvidado das fontes mais desenganadas do direito nacional, e esta um como instinto, ou força congênita, por ele cultivada a primor e elevada a um alto grau de perfeição e serenidade.
           Por menos notórios, não são inferiores nele os dons do professor. Apezar da extrema e natural modéstia com que tenta oculta-los a olhos profanos, os seus colegas e discípulos o temos e admiramos por mestre abalizado e guia seguro nas várias disciplinas da bela sciência a que dedicou os vigores do seu grande talento. Versado em todos os ramos da diceologia , assim nos do direito público, como nos do direito privado; autor de obras didáticas de incontestável valor pedagógico, exemplares perfeitos de clareza, precisão e bom método; competentíssimo nas especialidades do direito constitucional, civil, commercial, judiciário e penal; professa ainda, com excepcional saber, na faculdade jurídica da Baía, o direito romano, para que o predestinaram sobremodo o seu plácido temperamento de investigador e o seu largo preparo na língua de Cícero em que raríssimos entre n< span lang="ES-TRAD" style="font-family:"Calibri",sans-serif">ós o igualam. Mas o que mais atrái e prende neste exímio professor não é tanto o grande e aprofundado saber, senão o seu modo de ensinar, aparentemente tímido e receioso, mas, na realidade, insinuante e dominador dos ânimos. Ouvi-lo na cátedra é um encanto, desde que se lhe apreendeu o processo. Tema que ele verse com os alunos, por emmaranhado que  seja de seu natura, despe-se  logo das dificuldades, que o tomam insípido e tedioso, para fazer-se capitoso e aprazível. Graças à singeleza e acertado de sua orientação pedagógica, assimilam os seus discípulos, com extrema facilidade, o conteúdo e a forma do saber jurídico, manejando com destreza a rígidia e escabrosa tecnologia em que os austeros jurisconsultos de Roma vasaram as suas admiráveis criações. 
           Espírito eminentemente  cultivado e afeito às belezas tranquilas da literatura clássica, quer da heleno-latino, quer da francesa, quer da luso-brasileira, é ainda o dez. Filinto Bastos um escritor correcto, fluente e elegante, maiormente quando a sua pena aflóra os assuntos morais e re ligiosos em que tanto se compraz o seu formoso espírito, a sua alma de eleição. No domínio das comuns relações sociaes , de criatura a criatura, sobressai a bela individualidade do preclaro professor e jurisconsulto baiano por qualidades afectivas que o tornam verdadeiramente amado e querido. É um caracter nobre, servido por um coração de oiro. Gentil, cavalheiroso e afável para com todos, quaisquer que seja as suas procedências e posições, nunca perde o ensejo de praticar o bem, de orientar os desnorteados, de socorrer os aflitos, de animar os tíbios, a todos dispensando as mil bondades do seu sêr bem formado. 
           É um sábio imbutido num justo. Este livro é a expressão desse sentimento por parte de seus colegas, discípulos e admiradores.
           É um prêmio a suas virtudes. É uma obra de carinho, justiça e amor.

Ao Virgílio, meu eterno agradecimento, inclusive daqui d’onde estou.

Com a ressalva de Talleyrand: 

– Tudo em excesso torna-se insignificante. 

Ou a frase de Catarina:
– Quanto mais queremos ser, menos somos.

Via Shakespeare, a Megera Domada sabia das coisas. 


DEGRAU MINHA CONVERSA COM OS VIVOS – 5 

Com Nelson de Sousa Carneiro. Jornalista e político.


Dois dias apenas separam a minha morte da publicação feita por Nelson de Souza Carneiro. Era jornalista e virou político. Cá entre nós, foi o deputado que conseguiu, um dia, lá para a frente, em 1977, aprovar a Lei do Divórcio. Uma vitória. Especialmente das mulheres, que se viam pressionadas caso optassem pela separação. Como lutei ao longo da minha vida, nunca concordei com a diferenciação da condenação por adultério entre homens e mulheres.
Nelson era soteropolitano, ora pois.
Leio com alegria.

JORNAL DO BRASIL
10 de fevereiro de 1939
reproduzido em O IMPARCIAL
18 de fevereiro de 1939
CHRONICAS DO RIO
FILINTO BASTOS
Não fazem os homens inventario das fortunas moraes. Não se partilham nos juizes da terra as riquezas inaprecáveis do caracter, já escrevi alhures.
Filinto Bastos, por isso, certamente, não deixou testamento, que outros bens não possuia, senão os grandes exemplos, puros e altos, de sua longa e trabalhosa existencia. Não conheceu descanso, não recusou encargos. Não teve, na linha da existência, retas e curvas. Foi sempre um justo e bom. Os postos não lhe corromperam a modéstia nem as honrarias lhe exigiram imolasse aquella doçura com que a todos acolhia, paternal e generoso. Estudou muito desde cêdo. Já às proximidades da ordenação, abandonou a batina. Mas aí o dever do sacerdote é espalhar pelo mundo a maior soma de bens e encaminhar os espíritos desviados à senda illuminada pelo senhor, inclusive pelo aprimoramento de suas proprias virtudes, ninguem do seu tempo, melhor serviu à Religião, cujos mandamentos com enternecedora pontualidade, cumpriu até o derradeiro momento.
A cátedra e a magistratura disputaram a colaboração preciosa do insigne varão. E a todos os apelos acudiu, repartindo as suas horas, até as da velhice, entre as preocupações do juiz e a alegria contagiosa dos alunos. E ainda encontrava tempo para escrever os estudos jurídicos, que espalhou por todo o país, vencendo o desgraçado circulo de ferro que tem impedido cheguem aos demais centros intelectuais brasileiros tantas expressões vigorosas da cultura bahiana.
Os anos foram, entretanto, impiedosos com Filinto Bastos. Exigiram-lhe, de inicio, abandonasse o Tribunal. Cruel se tornou a despedida para o seu coração. Foi uma palavra de justiça humana que ali se calou. Restava, então, o mestre. Mas nem isso a idade respeitou no ilustre baiano. Já não poderia atender às aulas do curso secundário, nem siquer lhe foi permitido, pela saúde abalada, continuar ensinando as jovens professorandas do Educandario dos Perdões.
Ficou-lhe, apenas, a Escola de Direito, que êle ajudara a fundar, na ultima década do seculo passado, quando em seu espirito viviam, ainda recentes, as figuras e os debates que reclamaram para a Faculdade do Recife o respeito e a admiração nacionais. 
Catedratico de Direito Romano, cadeira, entretanto, não houve em que, por vezes, não tivesse ocupado. Dele não se poderia esperar senão o êxito. Não justificava surpresas. Reafirmava, ao contrario, cada dia, a largueza de seus conhecimentos, a paixão pelo magistério e as excelencias de sua bondade. Mestre de todas as gerações que se diplomaram na Bahia, Filinto fez de cada estudante, sem uma só exceção, um amigo e um admirador. Para isso foi apenas justo, da mais pura e nobre justiça, porque caldeada nos mais ternos sentimentos humanos.
A morte colheu-o na direção da Faculdade. Ainda bem que o mundo lhe não recusou, à hora extrema, essa homenagem. A sua vida foi, ela mesma, uma grande lição. As lutas da mocidade sem fortuna não quebrantaram o animo, não lhe apoucaram a fé. Não ambicionou mais do que teve. E teve muito pouco face ao que, como justo titulo, poderia desejar. Mas no lar feliz se pagou, na melhor moeda, das aspirações que não teve. Não encontrou ali, apenas carinho e incentivo, solidariedade e afeto. Deus concedeu-lhe a ventura de se certificar caminhavam seus filhos a mesma estrada da honra por êle, de cêdo, palmilhada. Seu nome não morrerá consigo. Nem a sua m emoria serviria como um contraste à rota de seus descendentes. Milionario da mais duradoura de todas as farturas, dotara aos seus de riquezas morais de excepcional  valia, tanto maior quanto menos numerosos se vão tornando esses privilegiados.
No silencio de uma tumba, repousam, desde hontem, no Campo Santo, em Salvador, os restos mortais de Filinto Bastos. Se se gravar amanhã, em sua tumba, algum epitefio, de modo a relembrar, aos que a encontrarem, oitenta e dois anos de útil e benfeitora existência, bastará que ali se inscreva: 
– “Aqui jaz um bom!”
NELSON DE SOUZA CARNEIRO


DEGRAU MINHA CONVERSA COM OS VIVOS – 6 
Com Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Professor da Faculdade de Direito do Paraná.

Julguei interessante também colocar este artigo de jornal que foi publicado no Paraná, apenas 8 dias após minha passagem. Porque ele narra um certo desalento que eu estariva vivendo com o processo educacional e com os próprios alunos. Será?

Como descrito, o colega Manoel me visitou na Rua Joana Angélica e conversamos sobre vários temas. O mais importante foi um certo desânimo de minha parte com os jovens profissionais, especialmente juristas, que começavam a deteriorar as leis. Afinal, estávamos no Estado Novo, onde arbitrariedades passaram a ser aceitas.  

GAZETA DO POVO
16 de fevereiro de 1939
EM MEMORIA DO CONSELHEIRO FELINTO BASTOS
MANOEL DE OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO
(Prof. da Faculdade de Direito do Paraná)


Noticias provenientes da cidade de São Salvador, trazem-nos a infausta noticia do passamento do ilustre Conselheiro Filinto Justiniano Ferreira Bastos, ultimo Diretor da Faculdade de Direito da Baia. 
Velho mestre, a sua morte para nós é mais um fato que registra dolorosamente em nosso pequeno tonel de saudades dos primeiros tempos de juventude. Uma saudade que fica para sempre porque traz consigo a alegria de uma imensa amizade intelectual.
Filinto Bastos tornou-se um grande companheiro meu. E a minha admiração pelo mestre de Direito Penal e Direito Romano mais aumentou quando fui recebido em sua residencia de Nazareth, na capital baiana.
Simples e modesto, conhecedor dos problemas fundamentais do direito, nunca fez do seu saber apanagio de superioridade e lisonjas. Sempre o mestre, ensinando e aconselhando, isto é, ensinando e orientando, porque não basta ao professor transmitir conhecimentos. 
– “É preciso (dizia-me êle) que o mestre justifique os seus conceitos, explique porque pensa de uma forma ou pensa de outra forma. Isto chama-se orientar inteligências, dar vigor a conhecimentos pouco exatos. O mestre moderno do direito não é só o jurista, o que sabe interpretar a lei com fidelidade, mas aquele que sita um fenômeno ou um fato, dentro da filosofia, dentro da sociologia, dentro da politica”.
Filinto Bastos, em palavras amigas, explicou que detestava o jurista de opiniões pessoais, a vaidade dessas opiniões pessoais, a vaidade dessas opiniões provocando falsas conclusões logicas. Notou, para nós, que dentro da ciencia do direito era bastante util estabelecer certos limites, porque a liberdade do pensamento jurídico, extravasando do escrito dos códigos, é que estava provocando no mundo moderno, esta formidável crise da “legalidade”.
—“Acredite Você (me repetiu ele) que os homens que aplicam o direito no Brasil, os juízes, são na sua maioria incapazes de justificar um gesto a não ser por meio de incisos e de parágrafos, quando todos nós sabemos que todos esses incisos e de paragrafos, quando todos nós sabemos que todos esses incisos e parágrafos, são meios oferecidos aos homens com o intuito de facilitar a justiça e a felicidade social”.
O mal do Brasil, para o meu inolvidável mestre, não era somente o excesso de opinião pessoal, mas a falta de orientação. Observando a nova mocidade da Baia e falando sobre ela a Filinto Bastos, senti que o mestre deixou-se encher de inexplicavel tristeza. Perguntei naturalmente o motivo. E êle respondeu: 
– “A minha geração trouxe o Brasil da monarquia para a republica e doou ao seu povo uma mentalidade juridica estruturada em codigos que são verdadeiros milagres da creação humana; a geração que sucedeu a nossa mostrou-se incapaz de continuar a velha diretriz, não sei porque motivo não conseguiu apreender aquela formação juridica , que ainda permanece, e que com esforço impuzemos à Pátria; na aplicação da lei, dos textos legais, tudo quanto construímos está cedendo lugar a ‘notas à margem’ ; a geração ultima, esta que vejo aqui na Baia, me acabrunha. Pessimamente educada e orientada, ela só tem desprezo para nós outros que construimos o Brasil. E eu sinto no incons ciente de todos esses moços que eu tenho de orientar e dirigir, uma violenta indole revolucionária que torna inconsequente os nossos mais puros esforços. O que me alegra é ainda saber, que em todo esse movimento revolucionario preparado pela juventude, ainda há muita gente em todo o Brasil que possue preocupação pela ‘verdade e pela cultura’, sem que isto os afaste do destino historico da geração”.
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Grande mestre e amigo! As tuas palavras ainda repercutem em meus sentimentos como bálsamo para as minhas inquietações quotidianas! Recordo e recordarei sempre os teus conselhos, certo de que na vida, êles hão de servir de incentivo para que o trabalho da ‘profunda’ geração a que pertenceste não desapareça estéril na voragem do tempo!
Mestre e amigo! A tua lembrança será para todos nós um prazer que não se esquece! E as tuas lições, os teus inúmeros livros o refugio onde iremos buscar o pensamento dessa geração que fez para nós o Brasil que hoje ai está!
A tua memória, mestre e amigo, pertence à mocidade do Brasil, à minha geração! A tua figura de varão ilustre, mestre e amigo, aparecerá sempre de brusco, em linhas rusticas mas puras, como a dessas estatuas gregas feitas para a eternidade, pois que, nessa rusticidade e pureza, simboliza a historia dos homens que trabalharam pela justiça e felicidade social do homem do Brasil.
XXXXX
As cinco ‘Conversas com os vivos’ me trazem boas lembranças. Quem sabe ainda descubra outras para trazer para você que me lê.

 

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 JORGE LEAL 

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